Arqueologia e Narrativas Indígenas se Encontram na História do Rio Negro
Com participação de pesquisadores tradicionais, Programa Parinã realiza escavação arqueológica na cidade mais indígena do Brasil e encontra cerâmicas e terra preta que indicam ocupação de até 2.000 anos.
Ana Amélia Hamdan – Jornalista do ISA
Escavação arqueológica em espaço público e visitas realizadas por pesquisadores indígenas e não indígenas a paisagens que fazem parte, ao mesmo tempo, das narrativas de origem dos povos do Rio Negro, da história colonial e de seu presente. Essas atividades foram desenvolvidas em São Gabriel da Cachoeira (AM), na região do Alto Rio Negro, durante a primeira oficina presencial do Programa Arqueológico Intercultural do Noroeste Amazônico (Parinã), realizada na sede do Instituto Socioambiental (ISA) entre os dias 10 e 20 de maio.
Nas escavações, foram encontradas cerâmicas e artefatos que indicam ocupações indígenas de até 2.000 anos, sendo que pesquisas realizadas em 2019 mostram que o povoamento pode ser mais antigo, de até 2.700 anos.
“Essa área tem a história da nossa existência. Podemos ver no concreto as histórias que contamos na oralidade”, disse o conhecedor indígena Arlindo Maia, do povo Tukano, sobre a paisagem de São Gabriel. Ele foi um dos participantes da oficina do Parinã, que contou com a presença de pesquisadores não indígenas e indígenas de diversas etnias, como Baré, Baniwa, Piratapuya, Desana e Tukano.
“É um encontro de grande importância, que traz trocas de vários grupos étnicos, com esclarecimentos entre nós. É muita coisa a ser repassada para o futuro. Aumenta a esperança de preservarmos a identidade e a cultura dos povos”, completou Maia.
Mesmo com as diferentes linguagens e abordagens, é possível encontrar um ponto de convergência apontado pelos integrantes do Parinã: São Gabriel da Cachoeira – conhecido como o município mais indígena do Brasil – é um lugar que conecta narrativas dos povos indígenas à história colonial de séculos passados e vivências contemporâneas. Além disso, os povos indígenas que vivem hoje no Alto Rio Negro podem ser os descendentes das pessoas que deixaram os vestígios arqueológicos.
Essas características estão presentes na área urbana e em comunidades indígenas, sendo um motivo de atenção especial para políticas públicas que reconheçam, protejam e preservem o território e as narrativas em suas diferentes formas. Um dos pontos do programa é propor, junto com os indígenas, uma reconstrução intercultural do sentido do patrimônio cultural para além do que está definido na legislação.
O historiador, antropólogo e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), Márcio Meira, integra a equipe do Parinã e reforça a importância da abordagem interdisciplinar. “Não viemos ensinar para os indígenas a história. Pelo contrário, estamos aqui mais para aprender do que para ensinar. Conhecedores indígenas têm um conhecimento que precisa ser valorizado. Por isso, o Parinã tem a proposta de pesquisa intercultural, misturando saberes e perspectivas indígenas e não indígenas”, explicou.
Uma exposição arqueológica e patrimonial está prevista para acontecer em São Gabriel da Cachoeira, no próximo mês de setembro, no encerramento da primeira etapa do Programa Parinã.
A organização ficará a cargo do Museu da Amazônia (Musa), com curadoria colaborativa envolvendo os participantes e parceiros do programa.
Poderão ser vistos na exposição objetos, narrativas e documentos reunidos no âmbito do projeto. O cineasta e comunicador da Rede Wayuri, Moisés Baniwa, filmou narrativas de conhecedores indígenas para que essas histórias também façam parte da mostra.
O programa Parinã foi iniciado em 2018 e envolve diversos parceiros, como o ISA, o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), o Museu da Amazônia (Musa), o Instituto de Arqueologia da University College London (UCL) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com participação do professor, pesquisador e antropólogo Geraldo Andrello. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) também apoia a iniciativa.
Descobertas arqueológicas
As escavações arqueológicas realizadas dentro do Programa Parinã aconteceram em uma área de 16m2 na praça em frente à Diocese e à catedral de São Gabriel. Durante os trabalhos, foram encontrados fragmentos de cerâmica de objetos como pratos e fogareiros, além de machados e instrumentos líticos que indicam povoações de até 2.000 anos.
Também foi encontrada a chamada “terra preta de índio”, tipo de solo enriquecido pela atividade humana e presente em outros pontos da Amazônia. “É um legado dos povos antigos para a composição da floresta”, diz a arqueóloga e professora Helena Pinto Lima, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, que participa das escavações em São Gabriel.
Ela explica que o local da escavação reúne características estratégicas para a localização de um povoamento indígena, como estar numa área de elevação natural, com vista ampla para o Rio Negro.
Também participaram das escavações o coordenador do Parinã, o arqueólogo Manuel Arroyo-Kalin, do Instituto de Arqueologia da University College London (UCL); o diretor-adjunto científico do Musa, o arqueólogo Filippo Stampanoni Bassi; a coordenadora do núcleo de Arqueologia e Etnografia do Musa, Meliam Gaspar, e o coordenador do Laboratório de Arqueologia do Musa, Iberê Martins.
Aluno de arqueologia da UEA, Junildo de Rezende Costa, da etnia Tukano, encontra parte da história de seus antepassados no sítio arqueológico
Aluno de arqueologia da UEA, Junildo de Rezende Costa, da etnia Tukano, encontra parte da história de seus antepassados no sítio arqueológico – Ana Amélia Hamdan/ISA
Os trabalhos de escavação no sítio arqueológico foram acompanhados por estudantes do curso de arqueologia da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) – Campus São Gabriel.
Um dos alunos é Junildo Rezende Costa, da etnia Tukano, que observou semelhanças entre objetos retirados da escavação arqueológica e narrativas que ele escuta em casa, contadas pelos seus pais e avós.
“A terra preta está em algumas roças. Machadinhas e cerâmicas são semelhantes às que meus avós contam que eram usadas por aqui”, lembrou o estudante.
Filippo informa que na área de São Gabriel há um extenso sítio arqueológico, com partes ocupadas por construções de órgãos públicos e outros.
Ele participou das escavações em frente à Diocese de São Gabriel e, em 2019, fez escavações em área do escritório local do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), onde foram encontradas terra preta e artefatos de até 2.700 anos.
“São pesquisas iniciais, em sítio arqueológico ainda pouco conhecido. Pode ser que as ocupações sejam mais antigas”.
Manuel explica que estudos indicam que em São Gabriel já houve um povoamento indígena, sendo que a cidade carrega a importante característica de, possivelmente, ter entre seus moradores os descendentes dos povos que viveram aqui em um passado remoto.
“Temos uma justificada esperança de que os povos indígenas atuais são descendentes das pessoas que foram responsáveis por criar os vestígios arqueológicos, os sítios antigos. É uma hipótese razoável”, sustentou o arqueólogo.
No município há cerca de 750 comunidades e sítios onde vivem indígenas de 23 etnias. Em São Gabriel da Cachoeira, há quatro línguas indígenas cooficiais além do português: Nheengatu, Tukano, Baniwa e Yanomami.
Manuel Arroyo considera que a Bacia do Rio Negro, onde está São Gabriel, é uma encruzilhada histórica etnográfica e arqueológica muito interessante. “Isso nos deixa várias perguntas sobre o que foi o passado dessa região, desde quando houve ocupação humana aqui, se foi uma ocupação humana densa, se alteraram a paisagem, se os povos que moravam aqui tinham relação com povos de outras regiões da Amazônia.”
As descobertas feitas até agora na região conversam com outras pesquisas que indicam que, na Bacia do Rio Negro, houve povoamentos antigos – de até 9.000 anos atrás – com intensas trocas entre os povos. Alguns desses estudos foram conduzidos pelo arqueólogo Eduardo Neves, que já realizou pesquisas na região de Iauareté.
Plataforma digital
Outra proposta do Parinã é o desenvolvimento e atualização de um banco de dados digital georreferenciado reunindo material de pesquisa já produzido na região do Rio Negro pelo ISA e colaboradores há pelo menos 20 anos. Esse trabalho está em andamento e é conduzido pela ecóloga e analista de geoprocessamento Renata Alves, do ISA, e pela antropóloga Aline Scolfaro, consultora do programa.
“Estamos trabalhando numa plataforma digital que mostre as várias camadas das teorias históricas indígenas, do período pré-colonial e pós-colonial, livros, fotos, localização, toponímia, mapas e narrativas. Algumas das histórias indígenas não acontecem nesse plano, sendo que a marca não está na paisagem, mas faz parte da história deles e precisam estar registradas tanto quanto os outros conhecimentos”, afirmou Renata Alves.
Exemplo do que poderá ser encontrado nessa plataforma é referente à Cachoeira de Ipanoré, localizada no Rio Uaupés, onde os primeiros ancestrais emergiram para este mundo, depois de longa viagem subaquática a bordo da cobra-canoa. Fotos, vídeos, narrativas e outras informações sobre a cachoeira estarão disponíveis na plataforma.
Uma das narrativas míticas conta que uma cobra-canoa saiu do Baía de Guanabara, subiu pelo litoral brasileiro, chegou ao Rio Amazonas e adentrou até o Negro e outros rios importantes da região, como o Uaupés. Esse caminho é marcado por lugares que são recordados na narrativa. Parte dessa história é contada no filme “Pelas Águas do Rio de Leite”, dirigido pela antropóloga Aline Scolfaro.
Outra proposta discutida durante a oficina Parinã foi a criação de um museu virtual com o acervo do Museu Goeldi de peças recolhidas no Noroeste Amazônico durante a viagem de Theodor Koch-Grünberg nos primeiros anos do século XX. Imagens com algumas dessas peças foram mostradas aos pesquisadores indígenas durante a oficina da antropóloga e pesquisadora do Goeldi, Lúcia van Velthem, conduzida com André Baniwa.
Durante a oficina, grupos de pesquisadores indígenas e não indígenas visitaram alguns pontos da paisagem de São Gabriel da Cachoeira.
Uma dessas caminhadas foi proposta por Márcio Meira, que conduziu o grupo até a Pedra da Fortaleza – hoje um ponto turístico da cidade, com vista para o pôr do sol e para a serra do Cabari e onde já esteve localizado um forte instalado por colonizadores portugueses.
O cenário da história colonial está registrado em aquarela de 1785 que foi reproduzida em um banner para ser levado até o local pelo grupo.
No caminho até a Pedra da Fortaleza, os indígenas encontraram pontos importantes de suas narrativas históricas. Um deles, uma rocha na rua da beira rio que, segundo a história indígena, é parte de uma cobra que foi morta ali durante uma batalha.
Meira explica que o diálogo entre os diversos saberes é primordial para o entendimento da região. “Essa possibilidade de diálogo entre história, arqueologia e conhecimentos tradicionais é a forma que temos para a gente entender melhor essa realidade social da região. Não há como entender se não houver esse diálogo entre os saberes”, salientou.
Segundo ele, a história colonial na região foi marcada por violência contra os indígenas, muitas vezes utilizados como mão de obra escrava para o extrativismo de produtos da floresta. “Foi um processo violento e duradouro, mas não foi suficientemente forte para apagar o modo de vida dos povos que vivem no Rio Negro”, refletiu.
Juka Sarmento Fernandes, da etnia Desana, é um dos bolsistas do Parinã e vem recuperando as narrativas de seu clã Juka Sarmento Fernandes, da etnia Desana, é um dos bolsistas do Parinã e vem recuperando as narrativas de seu clã|Ana Amélia Hamdan/ISA
De pai para filho
Também estão integrados à equipe do Parinã pesquisadores indígenas bolsistas que atuam de formas diversas, como em atividades em laboratório de arqueologia e tradução.
O objetivo é que as pesquisas sejam realizadas também em comunidades indígenas, atividade que foi limitada devido à pandemia.
Um dos bolsistas é o estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Juka Sarmento Fernandes, nome desana Diakuru, que vem resgatando as narrativas tradicionais contadas por seu pai, o conhecedor tradicional Durvalino Moura Fernandes, nome desana Kisibi.
Eles são Desana do clã Wari Dihpotiro Porã. As narrativas podem variar de acordo com o povo e até com o clã.
Durante a oficina em São Gabriel, Durvalino Moura ponderou que alguns objetos e documentos vão aparecer durante os trabalhos dos pesquisadores, mas outros não são visíveis, pois existem apenas em narrativas sagradas que atingem outras esferas.
“Essa é uma reunião para resgatarmos alguns conhecimentos. Mas há saberes que não revelamos, que só são passados entre familiares”, explicou o conhecedor.