Projeto de Lei Aprofunda a Financeirização da Terra e da Moradia no País
O que está em jogo no projeto de lei que permite a penhora de imóveis residenciais?
Foi aprovado na Câmara de Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 4188/21 que possibilita a perda do imóvel utilizado para a residência – bem de família – em caso de execução de dívidas, do proprietário ou de terceiros, para as quais tenha sido dado em garantia. Neste artigo, Tarcyla Fidalgo (Núcleo Rio de Janeiro) contextualiza e explica quais podem ser, de fato, os principais efeitos do PL. Em um país com um histórico de irregularidade fundiária generalizada, cujas estimativas apontam que 70% dos imóveis são irregulares, quantas famílias podem, efetivamente, oferecer seus imóveis como garantia de dívidas? Outro ponto destacado pela pesquisadora é que a medida apenas aprofunda um processo de desmobilização do instituto do “bem de família”, já em curso há alguns anos no país. Assim, a indignação sobre o PL nº 4188/21 precisa colocar em perspectiva o cenário amplo de alterações legislativas dedicadas a criar um arcabouço normativo de valorização da propriedade e responsabilidade individual pelos riscos sociais e econômicos em detrimento de políticas e institutos de proteção ao mínimo existencial.
“O instituto do bem de família está presente no ordenamento jurídico brasileiro desde 1916, no Código Civil, assumindo diversas configurações ao longo das décadas seguintes, até chegar à sua configuração atual dada pela Lei nº 8.009, de 1990. Em seu aspecto atual, a figura do bem de família dialoga diretamente com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e com o direito à moradia, efetivados por meio da proteção ao imóvel que serve de residência familiar.
Para além de endossar as falas e manifestações contrárias à medida, que sem dúvidas aprofunda o arcabouço neoliberal de precarização das condições de vida dos mais vulneráveis em privilégio dos interesses de agentes financeiros, é importante contextualizá-la e explicitar quais podem ser, de fato, seus principais efeitos.
Inicialmente, cabe esclarecer que a alteração promovida pelo referido projeto de lei em relação ao bem de família autoriza a penhora do imóvel de moradia da família “para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”. Ou seja, apenas as dívidas que tenham o imóvel como garantia poderão levar à sua penhora.
Neste sentido, é importante refletir sobre quantas famílias podem, de fato, oferecer seus imóveis como garantia de dívidas, o que pressupõe a regularidade registral. Em um país com um histórico de irregularidade fundiária generalizada, no qual, apesar da falta de dados, se estima que mais de 70% dos imóveis sejam irregulares, é seguro afirmar que a medida não terá maiores efeitos práticos imediatamente.
“Também é importante dizer que a medida apenas aprofunda um processo de desmobilização do instituto do “bem de família”, já em curso há alguns anos no país, seja por meio de alterações na Lei nº 8009/90, que o instituiu, seja por alterações na interpretação dos tribunais superiores sobre o tema. Cabe aqui destacar que, desde março deste ano, o STF passou a permitir a penhora do bem de família do fiador de contratos de locação residencial e comercial, entendendo que a voluntariedade no oferecimento do bem para servir de garantia a contrato alheio superaria a proteção à família que nele reside.
Assim, a indignação sobre a proposta contida no PL nº 4188/21 não pode prescindir de uma visão que o coloque em perspectiva, dentro de um cenário amplo de alterações legislativas dedicadas a criar um arcabouço normativo de valorização da propriedade e responsabilidade individual pelos riscos sociais e econômicos em detrimento de políticas e institutos de proteção ao mínimo existencial, como o bem de família objeto desta análise.
“Deste modo, é preciso retornar para 2017, com a inflexão do modelo de regularização fundiária e aprofundamento do processo de privatização de imóveis públicos que vem se prolongando até hoje. O PL nº 4188/21 se torna expressivamente perigoso a partir do momento em que a população vulnerabilizada receba, de forma rápida e massiva como prevê o novo modelo de regularização fundiária, títulos de propriedade individual que permitam a negociação dos seus imóveis como garantia de dívidas.
O que está em jogo, mais do que a perda imediata da moradia, é a montagem de um arcabouço normativo que permita uma nova rodada de mercantilização e o aprofundamento da financeirização da terra no Brasil. Sem a disseminação de títulos de propriedade privada prevista pela Lei nº 13.465/17, o PL nº 4188/21 terá pouca efetividade. Por sua vez, sem o referido PL, a Lei nº 13.465/17 pode ter dificuldades para converter a regularidade registral dos imóveis na dinamização de um mercado de hipotecas, títulos financeirizáveis lastreados na terra urbana.
Nossos olhos devem estar voltados para o todo, denunciando a perversidade do aprofundamento de um arcabouço normativo que reforça o ideário da terra e da moradia como mercadoria e ativo financeiro, em detrimento de sua concepção como direito.
O PL nº 4188/21 segue o – problemático – modelo norte americano que originou a crise de 2008 e resultou no despejo de milhares de famílias norte-americanas, mas não está sozinho na construção da versão brasileira deste modelo. Devemos nos questionar como sociedade se é esse modelo que queremos para as moradias em nossas cidades, e não cair na armadilha de imaginar que se trata de uma iniciativa que pode ser combatida, e derrubada, isoladamente.
Autor: Tarcyla Fidalgo Ribeiro
Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Coordenadora do Projeto Termo Territorial Coletivo na ONG Comunidades Catalisadoras (ComCat). Pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro. Conselheira Regional do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.